É clássica a frase “para problemas complexos, existe sempre uma solução simples, e errada”, o que é agravado quando esta é apresentada sob a forma de estudo científico.
Alertado pelo elogioso texto de Samuel Pessôa na Folha de S.Paulo, li a nota técnica de Sérgio Gobetti intitulada Progressividade tributária: diagnóstico para uma proposta de reforma e constatei algumas imprecisões, mesmo sabendo da diferença entre o olhar de um economista e o olhar jurídico sobre o mesmo fato.
A nota técnica acerta ao analisar o problema da regressividade da carga tributária brasileira, afastando de seu foco a tributação do consumo (EC 132), pois a tal incidência não se aplica a regra da progressividade, e observa a tributação da renda, à qual esta regra é aplicável. O problema está bem exposto no texto, com dados contundentes. O problema se encontra na trajetória apresentada e nas soluções que aponta.
A análise parte do pressuposto, que até pode ser verídico para os economistas, de que o custo tributário sobre as empresas pode ou não ser arcado pelos acionistas, a depender do modelo de tributação. Isso se revela no texto, em especial no seguinte trecho “definitivamente não é apropriado supor que todo IRPJ/CSLL pagos pelas empresas recaiam sobre os acionistas e proprietários”. A partir daí o texto ataca os sistemas tributários do Simples e do Lucro Presumido. Centrarei atenção apenas nesse ponto, embora o texto seja rico para debate em outros aspectos.
Em primeiro lugar, é inegável que havendo lucro na empresa, toda a carga tributária é transferida para o adquirente de bens e serviços por ela produzidos. Logo, quem paga qualquer tributo direto (IRPJ e CSL) ou indireto (ICMS, PIS, Cofins etc.) é sempre o consumidor dos bens e serviços produzidos pela empresa, e, havendo lucro, implica em afirmar que toda a carga tributária foi paga – caso contrário, não terá havido lucro. E, por conseguinte, não existirão dividendos a serem distribuídos.
Deve-se considerar que os regimes fiscais do Simples e do Lucro Presumido tributam a renda mesmo que ela não ocorra, pois sequer é contabilmente apurada, mas pressuposta. Privilegia-se a simplicidade e a praticabilidade, ao invés do rigor contábil de apuração da renda, como ocorre no sistema de Lucro Real. Nestes regimes fiscais, o IRPJ/CSL é pago sem que se apure a existência de lucro efetivo. Sendo assim, é duvidoso afirmar que “estimativas indicam que as empresas que aderiram aos regimes especiais pagaram apenas 25% do imposto teórico que teriam de pagar caso estivessem submetidas ao regime de Lucro Real e sem quaisquer outros benefícios tributários”.
Faltam dados para sustentar esta afirmativa, conforme a própria Receita Federal, o que é reconhecido na nota técnica: “as declarações de IRPF não distinguem por regime de tributação os lucros e dividendos recebidos pelas pessoas físicas. Há apenas uma separação entre dividendos do Simples Nacional e de todos os demais regimes juntos; ou seja, não é possível distinguir Lucro Presumido de Lucro Real, tampouco empresas financeiras de não financeiras”. Os dados não existem porque são irrelevantes para fins de incidência, pois o lucros distribuídos (dividendos) não sofrem incidência tributária, independentemente do regime fiscal à que as empresas estão submetidas.
Quem garante?
A nota segue afirmando que “o fato de uma empresa ser pequena não significa que seus donos tenham baixa capacidade contributiva e sejam merecedores de um tratamento privilegiado na tributação de suas rendas”. Ocorre que tais regimes fiscais, Simples e Lucro Presumido, existem com regras de limitação sobre sua receita bruta, logo, são empresas que possuem receitas limitadas, e, portanto, são tributadas obedecidos os parâmetros da simplicidade e da praticabilidade. Se os donos dessas empresas possuem ou não capacidade contributiva advinda de outras fontes, é irrelevante para os fins específicos deste ponto sob análise.
Segue-se o fato de que muitas dessas empresas simplesmente não existiriam se esses regimes fiscais não vigorassem. Quem garante que, sob o manto do Lucro Real, várias dessas empresas teriam sido iniciadas ou se manteriam ativas? Ou que teriam lucro efetivo, real? A configuração da economia brasileira seguramente seria outra – ou passará a ser, se esta lógica vier a ser implantada.
Desde as reformas realizadas em 1994, a incidência sobre o lucro ocorre na apuração da receita bruta das empresas, tendo havido majoração da carga tributária naquela ocasião. Isso permitiu afastar a fiscalização dentro de cada empresa, a fim de apurar se houve lucro ou se estava ocorrendo sua distribuição disfarçada (DDL), o que gerava um contencioso fiscal gigantesco, e abria a porta para eventuais casos de corrupção. A incidência, majorada, passou a ser prévia ao lucro, pois incidente sobre a receita bruta, e, havendo distribuição de lucro, o tributo já teria sido pago antecipadamente. Observe-se que isso trouxe uma vantagem gigantesca para o Fisco, pois antes mesmo da apuração do lucro, este já estava tributado caso ocorresse distribuição.
Sugestões preocupantes
O problema foi bem identificado, pois não se pode negar que a tributação da renda no Brasil seja regressiva, privilegiando quem ganha mais. Aliás, a enorme revolução realizada na tributação do consumo, que, mesmo antes de sua implantação já alcança mais de 50% da arrecadação brasileira, seguramente ampliará a regressividade da carga tributária, pois tal percentual será ampliado.
São preocupantes as duas alternativas apontadas na nota técnica como solução para “promover mais justiça fiscal, além de aumentar a eficiência e a competitividade da nossa economia”. Há uma proposta de solução estrutural, que é a de promover “alguma fórmula de tributação progressiva dos dividendos distribuídos às pessoas físicas, sem exceções”, o que fere a lógica jurídica estabelecida desde 1994, que tem se mostrado adequada sob o ponto de vista prático, com incidência majorada no ingresso das receitas. E há uma proposta de solução transitória, “enquanto tal reforma estrutural não ocorre, medidas alternativas como a imposição de um imposto mínimo sobre os milionários podem cumprir um papel paliativo temporário”, o que é igualmente preocupante, pois isso feriria a lógica da capacidade contributiva, criando uma espécie de imposto sobre grandes fortunas disfarçado, sem discernir sua base imponível ou fato econômico.
O problema da tributação dos dividendos talvez possa ser encaminhado de outra forma, distinguindo as sociedades de pessoas das sociedades de capital. Nas primeira, sociedades de pessoas, existem sócios e affectio societatis, sendo o dividendo algo que corresponde ao salário dos sócios, uma espécie de pró-labore eventual; já nas segundas, sociedades de capital, não existem sócios, mas acionistas sem qualquer affectio societatis, e há efetiva remuneração do capital investido, conforme expus anteriormente.
O problema da regressividade da tributação da renda é real e persiste, e, considerando o total da carga tributária, se agravará, em razão da revolução tributária em curso na tributação do consumo.
Fonte: Consultor Jurídico